“Em nenhum país o neonazismo cresceu tanto quanto no Brasil”, diz o historiador Michel Gherman
Pesquisador e professor na UFRJ e diretor do Instituto Brasil-Israel revela que recebeu denúncias que vinculam Bolsonaro diretamente ao genocídio dos ianomâmis
Em 2017, depois que Bolsonaro fez um discurso racista na Hebraica do Rio de Janeiro, o professor e pesquisador Michel Gherman gravou vídeo em que mostrava a associação da fala do então pré-candidato a presidente e com o Holocausto, e foi atacado por bolsonaristas, inclusive judeus como ele. Diziam que era exagero de Gherman.
"As pessoas teimam em não entender as relações entre racismo e Holocausto. Elas acham que ele se restringe ao antissemitismo”, disse ele à época.
Quase cinco anos depois, em entrevista à TV 247, Michel Gherman revisita o episódio e conclui:
"Eu fui muito atacado. E não sou mais atacado. As pessoas já estão assumindo o que, efetivamente, aconteceu. Isso é um processo, e esse processo agora está chegando à fase do genocídio, ou seja, as pessoas estão entendendo que houve genocídio", afirmou, a propósito das revelações sobre a situação dos povos indígenas, sobretudo os ianomâmis de Roraima.
Gherman é formado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém, e doutor e pós-doutor em história pela UFRJ, além de diretor acadêmico do Instituto Brasil-Israel.
Ao analisar o mais recente atentado à escola por um jovem que usava braçadeira com a suástica, em Monte Mor, interior de São Paulo, Gherman considera que o discurso bolsonarista impulsionou o crescimento de grupos neonazistas no Brasil.
"O Brasil, entre 2018 e 2021, foi o país onde houve mais crescimento de grupos neonazistas e o crescimento de antisemitismo no mundo", revela, com base nas pesquisas que realiza.
Mas o crescimento da extrema direita de caráter neonazista não é um fenômeno exclusivo do Brasil, ressalva. "Isso tem pouco a ver com a ascensão da extrema direita no Brasil. Isso acontece no mundo inteiro. E há uma relação profunda entre juventude e perspectivas extremistas, geralmente de extrema direita", pontua.
No Brasil, porém, a ameaça encontrou eco no poder central. "O que a gente vê no Brasil e que nos diferencia de outros lugares é que essas perspectivas das profundezas da internet pariram uma candidatura. E pariram uma candidatura a partir dessas mesmas referências", diz.
Como pesquisador que aponta o elo entre Bolsonaro e o avanço da ideologia neonazista, Gherman se tornou polo de denúncias de práticas de ódio e de eventos que, para ele, são "genocidárias" ou "prática eugênicas". E na semana passada, fontes que serviram ao governo que terminou em 31 de dezembro teriam relatado que as mortes e doenças dos ianomâmis não foram casuais.
"Nesse quebra-cabeça de assassinato deliberado de indígenas, é um quebra-cabeças que está praticamente montado. O que falta nesse quebra-cabeça são orientações diretas: deixem morrer, esses indígenas não fazem falta, etc e tal. Isso vai acontecer nos próximos dias. Realmente, eu recebo muitas informações de todos os lugares, e você tem muita gente – e isso aconteceu também em outros genocídios – da segunda ou terceira cadeia de comando que começam a entender o que fizeram, e essas pessoas começam a procurar pessoas para dizer: 'olha, é isso.'"
Gherman fez a afirmação à TV 247 depois de conversar com pessoas que o procuraram, mas, por enquanto, evita dar detalhes. Sinaliza que as denúncias estão relacionadas às ações do governo durante a pandemia de covid-19. Ele cita a orientação do governo Bolsonaro para que o Exército aumentasse a fabricação de cloroquina para distribuir à população brasileira como droga para combater a doença.
Ao mesmo, faltou cloroquina para combater a malária entre os indígenas, numa região onde essa doença é endêmica. "Cloroquina é utilizada para combater malária, Quem distribui cloroquina em Roraima não é o médico. O indígena não vai à esquina comprar cloroquina na farmácia. A única possibilidade com vínculos com médicos de essa cloroquina ser distribuída em Roraima é com o Exército brasileiro", afirma.
E a cloroquina, segundo ele, deixou de ser distribuída para os indígenas, num momento em que incidência da doença aumentou por conta dos lagos artificiais criados em decorrência da expansão do garimpo ilegal.
"Olha só que coisa louca, porque, além da malária endêmica, tem uma situação ainda maior: a criação de lagos artificiais por conta da mineração que produzem a concentração de mosquitos transmissores de malária. E você, então, não tem mais o remédio para tratar malária e a produção de malária estava lá", comenta.
Outro elemento importante que, na visão dele, caracteriza "prática genocidária" é a não-vacinação em massa dos indígenas contra a covid-19.
"É só você ver que aqui tem cadeia: compra (cloroquina, mas não distribui para combater a malária entre indígenas), libera o minério e não vacina os indígenas. Não me parece que seja um exagero, sendo bastante cuidadoso, bastante pouco ousado, eu digo que o que aconteceu em Roraima é absolutamente necessário que seja considerado genocídio. E é um dos genocídios mais claros que a gente tem desde a década de 90 no mundo", raciocina.
Exagero? Em 2017, quando ele disse que o discurso de Bolsonaro era nazista, disseram o mesmo sobre seu vídeo a respeito do discurso na Hebraica. Agora, ele está mostrando que, no nazismo, o caminho entre as palavras e a ação é mais curto do que o normal.
No discurso na Hebraica, Bolsonaro estabeleceu o que seriam "raças boas e raças ruins" e, não por acaso, "elogiou japoneses, italianos e alemães". Em 1933, quando Hitler se consolidou no poder, ele também não falava em genocídio, mas já mostrava que havia raças ruins. Bolsonaro fez o mesmo no clube judaico, em 2017.
"Na Hebraica, ele fala sobre os ianomâmis, quando ele fala sobre os indígenas, quando bate dizendo que nenhum território será demarcado em seu governo, ele faz isso com a ideia de que os indígenas não são brasileiros, os indígenas são representantes de ONGs. As ONGs substituem, no discurso bolsonarista, aquilo que os judeus eram para os nazistas na década de 30. Aqui tem uma dimensão que eu chamo de antissemita. Só que o semita da história é o índio. Não faz diferença nenhuma. Porque a construção do preconceito se dá pelo agente do preconceito", compara.
O Brasil derrotou Bolsonaro em 2022, mas a ameaça permanece, com movimentos como o armamentista, que estranhamento, na visão de Ghérman, vê o judeu como um tipo ideal. Não é o judeu verdadeiro, mas o "judeu imaginário", uma figura que reforça a ideologia extremista.
"Os judeus (imaginário) são o símbolo mais forte do homem branco. Inclusive, são vítimas e são brancos, o que acaba fazendo um contraponto às vítimas negras. O segundo elemento é que o judeu é ultracapitalista. Ultracapitalista no sentido de dizer que é forte o suficiente para não precisar do estado. De novo a dimensão da força. Então, ele pode ser capitalista sem nenhum problema. O terceiro elemento é a força da arma. Israel é um país caracterizado, na perspectiva da extrema direita neonazista, por ser forte e armado. Lá, todo mundo anda armado. Então, é um símbolo importante. E o quarto elemento é do judeu como cristão. Ou de Israel como um país cristão. Fundamentalista cristão", analisa.
E acrescenta:
"É claro que esses quatro elementos têm a ver com a percepção do judeu e de Israel, não com Israel e os judeus no sentido amplo da palavra. Mas ele (o neonazista) utiliza isso como o judeu imaginário. Ou Israel imaginário. Não que esse judeu e Israel imaginários não existam. Eles existem, mas são parte da grande complexidade que é a entidade humana, que é o caso do estado de Israel. Eles (os neonazistas) sequestram essa perspectiva, para produzir, em cima dela, uma identidade que é deles. E veja só: uma identidade importante, que hoje vincula ao passado metafísico, ao passado imaginário."
Bolsonaro é nazista pelo que fala e pratica. "Eu não acho que eu tenho que dizer que o Bolsonaro é nazista, o Bolsonaro diz que é nazista o tempo todo", diz. Bolsonaro já elogiou Hitler no Congresso Nacional, quando era deputado, foi homenageado em manifestação neonazista na Paulista, defendeu alunos de um colégio militar quando estes escolheram Hitler como figura exemplar.
São palavras com alto poder simbólico. No governo, pelo que Gherman observou no caso dos ianomâmis, as palavras ganharam concretude.
Veja a íntegra da entrevista no vídeo abaixo:
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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